Por Hélio Pellegrino
Um sintoma é sempre conseqüência - e não causa - de doença, embora possa vir a  tornar-se causa de novos efeitos, ou de novos sintomas. Nesta medida, o combate  ao sintoma não garante, de forma alguma, a remoção ou erradicação das causas da  doença. Muito ao contrário: o encobrimento ou o abafamento de um sintoma pode  gerar a perigosa ilusão de que a moléstia tenha sido erradicada. Ou ainda; a  luta exclusiva contra o sintoma pode criar a enganosa - e também perigosa -  convicção de que se está a combater a doença, quando, em verdade, estamos a  favorecê-la e a permitir o seu agravamento e expansão.
A propósito,  lembro-me de uma história exemplar, ocorrida na cidade mineira de Nova Lima, por  volta dos anos 30. Em Nova Lima, existe uma importante mina de ouro - a mina de  Morro Velho - que, àquela época, vivia o seu fastígio, e era propriedade de uma  companhia inglesa. Os operários, nas entranhas da terra, perfuravam a rocha com  suas brocas e picaretas e, desta forma, respiravam nas galerias fundas a poeira  de pedra que o trabalho levantava.
Sem nenhuma proteção, ao fim de algum  tempo, os mineiros, na sua quase totalidade, contraíam a silicose, causada pelo  depósito do pó de pedra em seus pulmões. A silicose, além de encurtar a vida e a  capacidade de trabalho, provoca também uma tosse crônica, oca e ressoante, capaz  de denunciar - à distância - a moléstia que lhe dá origem.
Nas noites de  Nova Lima, a cidade, quando buscava repouso, era sacudida e inquietada por uma  trovoada surda e cava que, nascendo dos casebres operários, rolava em ondas  recorrentes até às fraldas das montanhas em torno. Era a grande tosse dos  pobres, sintoma e denúncia eloqüente da silicose que os roía. Os ingleses,  perturbados em seu sono e em sua boa consciência, ao invés de adotarem medidas  hábeis para que a silicose cessasse, resolveram enfrentar o problema pelo  exclusivo ataque ao sintoma. Montaram em Nova Lima uma fábrica de xarope contra  a tosse que, ao mesmo tempo, produzia para consumo dos colonizadores  matéria-prima para refrigerantes não encontrados em nosso país.
A fábrica  andou de vento em popa, produzindo tonéis e tonéis de xarope, vendido a preço  módico, mas não tão modesto que impedisse uma pequena margem de lucro, por  unidade vendida. Os ingleses, dessa forma, uniram o útil ao agradável. O  abrandamento da grande trovoada brônquica foi transformada em fonte de renda, ao  mesmo tempo que devolvia, aos súditos de sua Majestade Britânica, a boa  consciência e a possibilidade de um sono reparador. A silicose, intocada,  trabalhava em silêncio.
Esse modelo tragicômico pode ser aplicado, com  estrita literalidade, a qualquer pretensão de combater a criminalidade  desatendida de sua condição de sintoma e, portanto, desenraizada das causas  sociais que a produzem e alimentam. Criminalidade é efeito, é forma perversa de  protesto, gerada por uma patologia social que a antecede e que é, também ela,  perversa. A criminalidade está para a patologia social assim como a tosse  convulsiva está para a silicose.
Cegueira  perigosa
É claro que a criminalidade, enquanto sintoma, tem que  ser adequadamente atendida por medidas policiais cabíveis, tanto quanto há que  minorar, através de remédio próprio, a tosse do silicótico. Mas que não se fique  nisto, já que o combate ao efeito não remove - nem resolve - a causa que o  produz. Ao contrário, a luta pura e simples contra o efeito pode tornar-se  danosa e perversa, uma vez que, destruindo a sua função alertadora e  denunciadora, provoca uma cegueira perigosa, a serviço do mal. A erradicação da  criminalidade, através de medidas puramente sintomáticas, é um procedimento  ideológico destinado a encobrir a responsabilidade social na produção dessa  mesma criminalidade.
É óbvia, do ponto-de-vista intuitivo, a correlação  entre criminalidade e crise social. Em nosso País, a onda de crimes, nas grandes  cidades, é solarmente proporcional ao aprofundamento da crise. Este paralelo  pode ser matematicamente desenhado, através de curvas estatísticas que lhe  definam o perfil.
Entretanto, cumpre considerar que nem toda crise social  gera criminalidade. Veja-se, a propósito, o exemplo da guerra do Vietnã, ainda  viva na memória de todos. O Vietnã do Norte e o Vietcong suportaram, da parte  dos invasores americanos, uma pressão militar arrasadora, cujos efeitos na vida  social do país foram, igualmente, arrazadores. Não obstante, o Vietnã do Norte  manteve altíssimo os eu moral guerreiro e patriótico, a ponto de levar à derrota  o invasor imperialista. Não houve lá nem criminalidade, nem desordem, nem  desespero. O povo, unido pela causa da libertação nacional, soube preservar,  contra todos os sofrimentos, a solidariedade, a fraternidade, o espírito de luta  - e a certeza na vitória.
Já no Vietnã do Sul, dirigido por um Governo títere e mercenário, as coisas se  passaram ao revés. O povo, maciçamente, aderiu à guerra de guerrilha, contra os  exércitos invasores. Restaram, a favor destes, os corruptos, os traidores, os  especuladores, os proxenetas, os rufiões e vendilhões de todo tipo. A  criminalidade atingiu níveis espantosos: o tráfico de drogas, o mercado negro, a  prostituição, o assalto, o estupro, o homicídio passaram a cancerizar a vida  social até à derrota militar - e ao desastre final.
A criminalidade,  portanto, cresce a partir de um certo tipo de crise social, ou melhor: ela é  expressão e conseqüência de uma patologia social suficientemente grave para  gerá-la. Uma crise social se torna apta a fomentar a criminalidade quando chega  a lesar, por apodrecimento grave, os valores sociais capazes de promover uma  identificação agregadora entre os membros de uma comunidade.
A vida  social, para ser respeitável e suportável, precisa estar irrigada e vivificada  por princípios mínimos de justiça, de equidade, de legitimidade do poder  político, de respeito pelo trabalho e pela pessoa humana. Esse elenco de  valores, acolhido por todos e cada um, irá constituir o Ideal de Eu de um  cultura determinada. O Ideal de eu, referência identificatória comum aos membros  de um processo civilizatório, constituirá o cimento capaz de promover a  integração - e a coesão - do tecido social.
Quando falta esse cimento;  quando apodrece o elenco de valores que constitui o Ideal do Eu de uma  sociedade; quando a injustiça impera e a iniquidade governa; quando a corrupção  pulula e a impunidade se instala; quando a miséria de milhões se defronta com a  aviltante ostentação de pouquíssimos; quando ocorre tudo isto que - no presente  momento - define e estigmatiza a sociedade brasileira, então a criminalidade  desfralda a sua bandeira perversa, e se torna a denúncia de uma estrutura social  também perversa.
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