17.3.12

Vastidão

"...

Por Ana Jácomo


Você tem toda razão: é tudo vasto. Essencialmente vasto. Generosamente vasto. Assustadoramente, também. Tão assustador que, pelo medo, muitas vezes inventamos e mantemos cativeiros que nos afastam da liberdade de sermos nós mesmos e de sermos felizes sendo nós mesmos. Que nos afastam da liberdade de avançar, gesto a gesto, incluindo os tropeços, as mancadas e os cansaços todos da nossa experiência, na direção do nosso conforto mais genuíno. Da nossa alegria mais profunda. Do jeito mais nosso de somar no mundo. Da nossa paz mais macia. Disponíveis, acessíveis, mesmo quando precisamos também lidar com as adversidades invariáveis da nossa humanidade, os riscos, as incertezas, os improvisos que surpreendem os roteiros, os sofrimentos.


Você tem toda razão: é tudo vasto. Essencialmente vasto. Generosamente vasto. Assustadoramente, também. Tão assustador que, pelo medo, muitas vezes nomeamos carcereiros e lhes atribuímos poderes, responsabilidades e chaves que, mesmo que quisessem, eles não têm, pois os poderes, as responsabilidades, as chaves, estão o tempo todo no mesmíssimo lugar onde os guardamos sem lembrar de tê-los escondido. Sem lembrar que são nossos e que o acesso a eles só pode acontecer se entrarmos e passearmos, receptivos, desarmados, desnudos de ego o máximo possível, no nosso próprio coração.


 
Você tem toda razão: é tudo vasto. Essencialmente vasto. Generosamente vasto. Assustadoramente, também. Mas se é nossa intenção sermos felizes, prósperos, bondosos, fazer florescer sementes de amor na nossa passagem por aqui, mesmo com todo medo do mundo, precisamos querer de verdade ir além da nossa assustada e acomodada estreiteza. Tantas vezes, tão doída. Tantas vezes, tão motivadora.


      Você tem toda razão: é tudo vasto. Essencialmente vasto. Generosamente vasto. Assustadoramente, também. Inclusive, o próprio amor. Que não tem limites. Que tudo pode curar. Que tudo pode abraçar. Que tudo pode transformar, contrariando as perspectivas apertadas e assustadíssimas das temporadas nos cárceres.


..."

5.10.11

O poeta


Eu vejo Deus na melodia da chuva de encontro à rocha. No cheiro de vida da terra molhada. Na sintonia da via láctea e na grandiosidade do universo.

Eu sinto Deus no calor temperado do sol nascente e na poética encantadora do sol poente. Nas memórias doces que persistem apesar do distanciamento do tempo. Na esperança que prevalece a despeito das condições.
Eu imagino Deus como fonte de inspiração, como parceria incondicional, relação que prevê escolhas e consequências. Sereno, manso, pouco invasivo e, curiosamente, vívido e potente.
Eu aprecio Deus na linguagem universal da música, na beleza da diversidade e no propósito da vida.
A expressão de sua falta, todavia, é o que já estamos cansados de tolerar.


"Um dia uma folha me bateu nos cílios.
Achei Deus de uma grande delicadeza"
 Clarice Lispector

6.9.11

A grande tosse dos pobres

Por Hélio Pellegrino

Um sintoma é sempre conseqüência - e não causa - de doença, embora possa vir a tornar-se causa de novos efeitos, ou de novos sintomas. Nesta medida, o combate ao sintoma não garante, de forma alguma, a remoção ou erradicação das causas da doença. Muito ao contrário: o encobrimento ou o abafamento de um sintoma pode gerar a perigosa ilusão de que a moléstia tenha sido erradicada. Ou ainda; a luta exclusiva contra o sintoma pode criar a enganosa - e também perigosa - convicção de que se está a combater a doença, quando, em verdade, estamos a favorecê-la e a permitir o seu agravamento e expansão.

A propósito, lembro-me de uma história exemplar, ocorrida na cidade mineira de Nova Lima, por volta dos anos 30. Em Nova Lima, existe uma importante mina de ouro - a mina de Morro Velho - que, àquela época, vivia o seu fastígio, e era propriedade de uma companhia inglesa. Os operários, nas entranhas da terra, perfuravam a rocha com suas brocas e picaretas e, desta forma, respiravam nas galerias fundas a poeira de pedra que o trabalho levantava.

Sem nenhuma proteção, ao fim de algum tempo, os mineiros, na sua quase totalidade, contraíam a silicose, causada pelo depósito do pó de pedra em seus pulmões. A silicose, além de encurtar a vida e a capacidade de trabalho, provoca também uma tosse crônica, oca e ressoante, capaz de denunciar - à distância - a moléstia que lhe dá origem.

Nas noites de Nova Lima, a cidade, quando buscava repouso, era sacudida e inquietada por uma trovoada surda e cava que, nascendo dos casebres operários, rolava em ondas recorrentes até às fraldas das montanhas em torno. Era a grande tosse dos pobres, sintoma e denúncia eloqüente da silicose que os roía. Os ingleses, perturbados em seu sono e em sua boa consciência, ao invés de adotarem medidas hábeis para que a silicose cessasse, resolveram enfrentar o problema pelo exclusivo ataque ao sintoma. Montaram em Nova Lima uma fábrica de xarope contra a tosse que, ao mesmo tempo, produzia para consumo dos colonizadores matéria-prima para refrigerantes não encontrados em nosso país.
A fábrica andou de vento em popa, produzindo tonéis e tonéis de xarope, vendido a preço módico, mas não tão modesto que impedisse uma pequena margem de lucro, por unidade vendida. Os ingleses, dessa forma, uniram o útil ao agradável. O abrandamento da grande trovoada brônquica foi transformada em fonte de renda, ao mesmo tempo que devolvia, aos súditos de sua Majestade Britânica, a boa consciência e a possibilidade de um sono reparador. A silicose, intocada, trabalhava em silêncio.

Esse modelo tragicômico pode ser aplicado, com estrita literalidade, a qualquer pretensão de combater a criminalidade desatendida de sua condição de sintoma e, portanto, desenraizada das causas sociais que a produzem e alimentam. Criminalidade é efeito, é forma perversa de protesto, gerada por uma patologia social que a antecede e que é, também ela, perversa. A criminalidade está para a patologia social assim como a tosse convulsiva está para a silicose.

Cegueira perigosa

É claro que a criminalidade, enquanto sintoma, tem que ser adequadamente atendida por medidas policiais cabíveis, tanto quanto há que minorar, através de remédio próprio, a tosse do silicótico. Mas que não se fique nisto, já que o combate ao efeito não remove - nem resolve - a causa que o produz. Ao contrário, a luta pura e simples contra o efeito pode tornar-se danosa e perversa, uma vez que, destruindo a sua função alertadora e denunciadora, provoca uma cegueira perigosa, a serviço do mal. A erradicação da criminalidade, através de medidas puramente sintomáticas, é um procedimento ideológico destinado a encobrir a responsabilidade social na produção dessa mesma criminalidade.

É óbvia, do ponto-de-vista intuitivo, a correlação entre criminalidade e crise social. Em nosso País, a onda de crimes, nas grandes cidades, é solarmente proporcional ao aprofundamento da crise. Este paralelo pode ser matematicamente desenhado, através de curvas estatísticas que lhe definam o perfil.

Entretanto, cumpre considerar que nem toda crise social gera criminalidade. Veja-se, a propósito, o exemplo da guerra do Vietnã, ainda viva na memória de todos. O Vietnã do Norte e o Vietcong suportaram, da parte dos invasores americanos, uma pressão militar arrasadora, cujos efeitos na vida social do país foram, igualmente, arrazadores. Não obstante, o Vietnã do Norte manteve altíssimo os eu moral guerreiro e patriótico, a ponto de levar à derrota o invasor imperialista. Não houve lá nem criminalidade, nem desordem, nem desespero. O povo, unido pela causa da libertação nacional, soube preservar, contra todos os sofrimentos, a solidariedade, a fraternidade, o espírito de luta - e a certeza na vitória.
Já no Vietnã do Sul, dirigido por um Governo títere e mercenário, as coisas se passaram ao revés. O povo, maciçamente, aderiu à guerra de guerrilha, contra os exércitos invasores. Restaram, a favor destes, os corruptos, os traidores, os especuladores, os proxenetas, os rufiões e vendilhões de todo tipo. A criminalidade atingiu níveis espantosos: o tráfico de drogas, o mercado negro, a prostituição, o assalto, o estupro, o homicídio passaram a cancerizar a vida social até à derrota militar - e ao desastre final.

A criminalidade, portanto, cresce a partir de um certo tipo de crise social, ou melhor: ela é expressão e conseqüência de uma patologia social suficientemente grave para gerá-la. Uma crise social se torna apta a fomentar a criminalidade quando chega a lesar, por apodrecimento grave, os valores sociais capazes de promover uma identificação agregadora entre os membros de uma comunidade.

A vida social, para ser respeitável e suportável, precisa estar irrigada e vivificada por princípios mínimos de justiça, de equidade, de legitimidade do poder político, de respeito pelo trabalho e pela pessoa humana. Esse elenco de valores, acolhido por todos e cada um, irá constituir o Ideal de Eu de um cultura determinada. O Ideal de eu, referência identificatória comum aos membros de um processo civilizatório, constituirá o cimento capaz de promover a integração - e a coesão - do tecido social.

Quando falta esse cimento; quando apodrece o elenco de valores que constitui o Ideal do Eu de uma sociedade; quando a injustiça impera e a iniquidade governa; quando a corrupção pulula e a impunidade se instala; quando a miséria de milhões se defronta com a aviltante ostentação de pouquíssimos; quando ocorre tudo isto que - no presente momento - define e estigmatiza a sociedade brasileira, então a criminalidade desfralda a sua bandeira perversa, e se torna a denúncia de uma estrutura social também perversa.

Artigo inteiro:

17.7.11

Cansada de discursos prontos e argumentações oportunistas.
Exausta de justificativas, objetivos e planejamentos estratégicos.
Farta de protocolos, normas e metas de longo prazo.
Já não mais suporto observar os ponteiros do relógio desafiando a capacidade física e mental de seres humanos.



Quero energia, calor, frio, melodias, gaitas e violões.
Quero andar sobre a terra até encardir os pés.
Sentir o frio das águas no breu da madrugada.
Quero banhos de chuva a estancar qualquer desespero
Escalar montanhas e chegar ao topo fedida de suor.
Quero presenciar pores do sol nos quatro cantos do mundo.
Quero chorar desvergonhosamente por tudo o que alegra e entristece.
Quero ouvir todas as músicas às quais o coração responde acelerando.
Quero a cura de feridas emocionais e a democratização de patentes.
Quero pedir todos os perdões a quem devia e não fui capaz de fazê-lo.
Quero a liberdade de gritar, chorar e sair correndo todas as vezes que achar devido.
Quero viver ao lado de gente de carne e osso, que ri de seus tropeços, que não se rende a triunfos baratos, gente a quem o constrangimento alheio não é fonte de satisfação.

7.10.10

It's up to you

É no mínimo gratificante encontrar textos bem articulados, com argumentação respaldada por princípios científicos a fortalecer nossos posicionamentos pessoais frequentemente criticados.

Senti isso quando tive acesso ao texto abaixo e me lembrei do que postei aqui, no início do ano, sobre o “Copenhagen 2009”.

Este texto é, na verdade, um capítulo do livro intitulado “The weather makers”, do cientista e conservacionista australiano Tim Flannery. Em sua obra, Flannery analisa o comportamento humano contemporâneo, seu impacto ambiental e explora ainda as conseqüências potenciais de tal comportamento.



Chapter 35: Over to You

There is one thing that no CEO can afford to look away from – the melee of buyers and sellers known as the market. It is my firm belief that all the efforts of government and industry will come to naught unless the good citizen and consumer takes the iniciative, and in tackling climate change the consumer is in a most fortunate position.

You can, in a few months rather than the fifty years allowed by some government, easily attain the 70 % reduction in emissions required to stabilize the earth’s climate. All it takes are a few changes to your personal life, none of which requires serious sacrifices.

Understanding how you use electricity is the most powerful tool in your armory, for that allows you to make effective decisions about reducing your personal emissions of CO2. To begin, pick up and read carefully your electricity bill. Is your bill higher than it was at the same time last year? If so, why? A phone call or e-mail inquiry to your power supplier may help clarify this.

If you wish to take more decisive action, the best place for most people to start is with hot water. In the developed world, roughly one-third of CO2 emissions result from domestic power, and one-third of a typical domestic power bill is spent on heating water. This is crazy, since the sun will heat your water for free if you have the right device. An initial outlay is required, but such are the benefits that it is well worth taking out a loan to do so, for in sunny climates like California or southern Europe the payback period is around two or three years, and as the devices usually carry a ten-year guarantee, that means at least seven to eight years of free hot water. Even in cloudy regions such as Germany and Britain, you will get several year’s worth of hot water for free.

If you wish to reduce your impact even further, start with the greatest consumers of power, which for most people are air conditioning, heating, and refrigeration. If you are thinking of installing any such items, you should seek out the most energy-efficient model available.

A good rule of thumb is to choose the smallest device to suit your average needs, and consider alternatives: it may be cheaper to install insulation rather than buying and running a larger heater or cooler. It can be difficult to convince children that they need to turn off appliances when they are finished with them. One way to teach them is for a family to examine its power bill together and set a target for reduction. When it’s met, give the kids the savings.

It is not feasible right now for most of us to do away with burning fossil fuels for transport, but we can greatly reduce their use. Walking wherever possible is highly effective, as is taking public transport. Hybrid fuel vehicles are twice as fuel efficient as a standard, similar-sized car, and trading in your four-wheel-drive or SUV for a medium-sized hybrid fuel car cuts your personal transport emissions by 70% in one fell swoop.

For those who cannot or do not wish to drive a hybrid, a good rule is to buy the smallest vehicle capable of doing the job you most often require. You can always rent for the rent for the rare occasions you need something larger. A few years from now, if you have invested in solar power, you should be able to purchase a compressed-air vehicle. Then you can truly thumb your nose at all of those power and gas bills.

As you read through this list of vacations to combat climate change, you might be skeptical that such steps can have such a huge impact. But not only is our global climate approaching a tipping point, our economy is as well, for the energy sector is about to experience what the Internet brought to the media – an age wherein previously discrete products are in competition with each other, and with the individual.

If enough of us buy green power, solar panels, solar hot water systems, and hybrid vehicles, the cost of these items will plummet. This will encourage the sale of yet more panels and wind generators, and soon the bulk of domestic power will be generated by renewable technologies. This will place sufficient pressure on industry that, when combined with the pressure from Kyoto, it will compel energy-hungry enterprises to maximize efficiency and turn to clean power generation. This will make renewables even more affordable. As a result, the developing world – including China and India – will be able to afford clean power rather than filthy coal.

With a little help from you, right now, the developing giants of Asia might even avoid the full carbon catastrophe in which we, in the industrialized world, find ourselves so deeply mired.
Much could go wrong with this linked lifeline to climate safety. It may be that the big power users will infiltrate governments further and stymie the renewable sector; or maybe we will act too slowly, and nations such as China and India will have already invested in fossil fuel generation before the price of renewable comes down. Or perhaps the rate of climate change will be discovered to be too great and we will have to drawn CO2 from the atmosphere.

As these challenges suggest, we are the generation fated to live in the most interesting of times, for we are now the weather makers, and the future of biodiversity and civilization hangs on our actions.

I have done my best to fashion a manual on the use of Earth’s thermostat. Now it’s over to you.


The weather makers -  Tim Flannery

11.8.10

Uma verdade bem conveniente.

"Se o estudo ao qual nos dedicamos tem a tendência de enfraquecer-nos as emoções e destruir nosso gosto pelos prazeres simples que nada pode corromper, então esse estudo é certamente inadequado à mente humana. Se tal regra tivesse sempre sido observada, se homem algum permitisse que sua busca, fosse qual fosse, interferisse na tranquilidade de sua vida particular, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado sua terra, a América teria sido descoberta mais gradualmente e os impérios do México e do Peru não teriam sido destruídos."

Frankenstein - Mary Shelley.

9.7.10

On translation

"O tradutor, antes mesmo de sê-lo, é leitor. E como todo leitor, negligente ou rigoroso, seu primeiro movimento é de se entregar ao que lhe falam. De considerar o que lhe contam. De tomar pé, certamente, das palavras que lhe são servidas, mas logo se evade e constroi uma representação da experiência que lhe é produzida. Experiência a partir da qual ele supõe, sem mesmo dar-se conta, que o próprio autor foi embora. Ele incialmente presta menos atenção no que lhe é dito do que no que o entretém.
Seria inútil, seria estúpido alguém reprová-lo por isso. Mas seria uma espécie de cegueira não reconhecê-lo. E não perceber que toda sua prática, com muita frequência, deriva desse modo de leitura. Pois não é de praxe que, uma vez construída essa representação, o tradutor se volte e considere a sequência de vocábulos que a permitiu. E sua tarefa então lhe parece clara: essa representação, é necessário dizê-la. E dizê-la, pensa ele, "como se diria", ou seja, naturalmente, espontaneamente, direto e sem contorções. Porque o tradutor tem, como todos, o sentimento profundo e mal definível de que existe para qualquer representação uma maneira de dizer espontânea, natural, direta e nua, que ele conhece e que lhe pertence, da qual não pode se afastar".

CHEVALIER, "Traduction, littéralité et chaîne de causalités", 1995.