6.9.11

A grande tosse dos pobres

Por Hélio Pellegrino

Um sintoma é sempre conseqüência - e não causa - de doença, embora possa vir a tornar-se causa de novos efeitos, ou de novos sintomas. Nesta medida, o combate ao sintoma não garante, de forma alguma, a remoção ou erradicação das causas da doença. Muito ao contrário: o encobrimento ou o abafamento de um sintoma pode gerar a perigosa ilusão de que a moléstia tenha sido erradicada. Ou ainda; a luta exclusiva contra o sintoma pode criar a enganosa - e também perigosa - convicção de que se está a combater a doença, quando, em verdade, estamos a favorecê-la e a permitir o seu agravamento e expansão.

A propósito, lembro-me de uma história exemplar, ocorrida na cidade mineira de Nova Lima, por volta dos anos 30. Em Nova Lima, existe uma importante mina de ouro - a mina de Morro Velho - que, àquela época, vivia o seu fastígio, e era propriedade de uma companhia inglesa. Os operários, nas entranhas da terra, perfuravam a rocha com suas brocas e picaretas e, desta forma, respiravam nas galerias fundas a poeira de pedra que o trabalho levantava.

Sem nenhuma proteção, ao fim de algum tempo, os mineiros, na sua quase totalidade, contraíam a silicose, causada pelo depósito do pó de pedra em seus pulmões. A silicose, além de encurtar a vida e a capacidade de trabalho, provoca também uma tosse crônica, oca e ressoante, capaz de denunciar - à distância - a moléstia que lhe dá origem.

Nas noites de Nova Lima, a cidade, quando buscava repouso, era sacudida e inquietada por uma trovoada surda e cava que, nascendo dos casebres operários, rolava em ondas recorrentes até às fraldas das montanhas em torno. Era a grande tosse dos pobres, sintoma e denúncia eloqüente da silicose que os roía. Os ingleses, perturbados em seu sono e em sua boa consciência, ao invés de adotarem medidas hábeis para que a silicose cessasse, resolveram enfrentar o problema pelo exclusivo ataque ao sintoma. Montaram em Nova Lima uma fábrica de xarope contra a tosse que, ao mesmo tempo, produzia para consumo dos colonizadores matéria-prima para refrigerantes não encontrados em nosso país.
A fábrica andou de vento em popa, produzindo tonéis e tonéis de xarope, vendido a preço módico, mas não tão modesto que impedisse uma pequena margem de lucro, por unidade vendida. Os ingleses, dessa forma, uniram o útil ao agradável. O abrandamento da grande trovoada brônquica foi transformada em fonte de renda, ao mesmo tempo que devolvia, aos súditos de sua Majestade Britânica, a boa consciência e a possibilidade de um sono reparador. A silicose, intocada, trabalhava em silêncio.

Esse modelo tragicômico pode ser aplicado, com estrita literalidade, a qualquer pretensão de combater a criminalidade desatendida de sua condição de sintoma e, portanto, desenraizada das causas sociais que a produzem e alimentam. Criminalidade é efeito, é forma perversa de protesto, gerada por uma patologia social que a antecede e que é, também ela, perversa. A criminalidade está para a patologia social assim como a tosse convulsiva está para a silicose.

Cegueira perigosa

É claro que a criminalidade, enquanto sintoma, tem que ser adequadamente atendida por medidas policiais cabíveis, tanto quanto há que minorar, através de remédio próprio, a tosse do silicótico. Mas que não se fique nisto, já que o combate ao efeito não remove - nem resolve - a causa que o produz. Ao contrário, a luta pura e simples contra o efeito pode tornar-se danosa e perversa, uma vez que, destruindo a sua função alertadora e denunciadora, provoca uma cegueira perigosa, a serviço do mal. A erradicação da criminalidade, através de medidas puramente sintomáticas, é um procedimento ideológico destinado a encobrir a responsabilidade social na produção dessa mesma criminalidade.

É óbvia, do ponto-de-vista intuitivo, a correlação entre criminalidade e crise social. Em nosso País, a onda de crimes, nas grandes cidades, é solarmente proporcional ao aprofundamento da crise. Este paralelo pode ser matematicamente desenhado, através de curvas estatísticas que lhe definam o perfil.

Entretanto, cumpre considerar que nem toda crise social gera criminalidade. Veja-se, a propósito, o exemplo da guerra do Vietnã, ainda viva na memória de todos. O Vietnã do Norte e o Vietcong suportaram, da parte dos invasores americanos, uma pressão militar arrasadora, cujos efeitos na vida social do país foram, igualmente, arrazadores. Não obstante, o Vietnã do Norte manteve altíssimo os eu moral guerreiro e patriótico, a ponto de levar à derrota o invasor imperialista. Não houve lá nem criminalidade, nem desordem, nem desespero. O povo, unido pela causa da libertação nacional, soube preservar, contra todos os sofrimentos, a solidariedade, a fraternidade, o espírito de luta - e a certeza na vitória.
Já no Vietnã do Sul, dirigido por um Governo títere e mercenário, as coisas se passaram ao revés. O povo, maciçamente, aderiu à guerra de guerrilha, contra os exércitos invasores. Restaram, a favor destes, os corruptos, os traidores, os especuladores, os proxenetas, os rufiões e vendilhões de todo tipo. A criminalidade atingiu níveis espantosos: o tráfico de drogas, o mercado negro, a prostituição, o assalto, o estupro, o homicídio passaram a cancerizar a vida social até à derrota militar - e ao desastre final.

A criminalidade, portanto, cresce a partir de um certo tipo de crise social, ou melhor: ela é expressão e conseqüência de uma patologia social suficientemente grave para gerá-la. Uma crise social se torna apta a fomentar a criminalidade quando chega a lesar, por apodrecimento grave, os valores sociais capazes de promover uma identificação agregadora entre os membros de uma comunidade.

A vida social, para ser respeitável e suportável, precisa estar irrigada e vivificada por princípios mínimos de justiça, de equidade, de legitimidade do poder político, de respeito pelo trabalho e pela pessoa humana. Esse elenco de valores, acolhido por todos e cada um, irá constituir o Ideal de Eu de um cultura determinada. O Ideal de eu, referência identificatória comum aos membros de um processo civilizatório, constituirá o cimento capaz de promover a integração - e a coesão - do tecido social.

Quando falta esse cimento; quando apodrece o elenco de valores que constitui o Ideal do Eu de uma sociedade; quando a injustiça impera e a iniquidade governa; quando a corrupção pulula e a impunidade se instala; quando a miséria de milhões se defronta com a aviltante ostentação de pouquíssimos; quando ocorre tudo isto que - no presente momento - define e estigmatiza a sociedade brasileira, então a criminalidade desfralda a sua bandeira perversa, e se torna a denúncia de uma estrutura social também perversa.

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